domingo, 15 de janeiro de 2012

A casa de bonecas (Coletânea)

A CASA DE BONECAS

Casos de desaparecimento acorrem, rotineiramente, ao redor de todo o mundo e no Brasil não é diferente. Por aqui, cerca de 40 mil crianças e adolescentes desaparecem por ano e aproximadamente 10% a 15% desse total de jovens permanecem com o paradeiro desconhecido. Uma triste estimativa que atinge famílias de todas as classes sociais do país.
A Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPECA) recomenda que em casos de desaparecimento, o primeiro lugar onde devemos procurar são os arredores do local no qual o indivíduo supostamente sumiu. A polícia aconselha também que seja realizada uma rápida busca pelas delegacias de polícia, hospitais e pronto-socorros, além de registrar um boletim de ocorrência informando à DPECA ou ao Conselho Tutela sobre o desaparecimento do jovem. Embora algumas pessoas desconheçam, não é necessário esperar 24h para registrar o boletim de ocorrência, pois ele pode ser feito a qualquer momento. As primeiras horas que sucedem o sumiço são essenciais para aumentar as chances de sucesso na localização e proteção do desaparecido.  
Renata, funcionária pública do estado, moradora de Linhares, realizou todos esses procedimentos para tentar localizar sua filha de apenas 8 anos de idade, mas até hoje a pequena Isabela faz parte do percentual de jovens do Brasil que continuam desaparecidos. A estória que vou lhes contar aconteceu no ano de 2007, em Espírito Santo, e versa sobre um sinistro caso de desaparecimento.
Era final de tarde quando Renata olhou para o relógio pendurado sob a porta e respirou aliviada. 18:30h era o que os ponteiros indicavam. Rapidamente guardou seus pertences, desligou o computador, se despediu dos colegas de trabalho que iriam fazer hora extra e então desceu as escadas do Tribunal de Justiça. Graças ao horário de verão o dia ainda estava claro e a rua Alair Garcia Duarte bem movimentada. Fatores estes que motivaram Renata a regressar a pé para casa. Normalmente voltava de ônibus, no entanto, não era nenhum sofrimento percorrer, na caminhada, a distância de pouco mais de três quarteirões.
Ao longo da calçada, vendedores ambulantes e vitrines de loja apresentavam suas promoções de fim de ano e Renata acabou resolvendo fazer umas comprinhas (A famosa terapia de relaxamento que as mulheres costumam realizar quando tem um dia difícil). Entrou numa loja de calçados que tinha um enorme letreiro onde lia-se: Liquidação no interior da loja. Após uns 30 minutos, a funcionária do estado, saiu de lá carregando uma bolsa onde continha dois Scarpins e uma sandália rasteirinha. Perceptivelmente sua fisionomia era outra. Já nem lembrava mais a mulher que tivera um dia de trabalho sobrecarregado. Renovada ela seguiu adiante e não pretendia comprar mais nada, contudo, ao ver a loja de antiquários do senhor Gilberto ainda aberta, não resistiu e entrou, relembrando que fora Humberto – seu saudoso avô – quem a ensinara a apreciar objetos antigos.
– Boa noite, senhor Gilberto! – cumprimentou após passar pela porta. – O que tem de novidade?
Sentado atrás de um balcão tentando concertar um rádio vitrola, o senhor, que aparentava mais idade do que ostentava, não resistiu e então respondeu:
– Desculpe, mas se quer novidades, veio ao lugar errado! Caso não tenha notado, Isso aqui é uma loja de antiguidades! – brincou ele, com um enorme sorriso no rosto ao ver quem entrava em sua loja. – Olá minha querida! – disse ele, em seguida, largando de lado o que fazia. – Como vai a minha freguesa predileta?   
Renata sorriu.
– Vou bem, obrigada!
– Já faz alguns dias que não a vejo!
– Pois é, senhor Gilberto. Estou tendo uma semana difícil no trabalho... você sabe como é...
– Eu entendo! – respondeu o velho feliz em vê-la novamente. – Venha comigo! Vou lhe mostrar os produtos que chegaram ontem pela manhã. – Tem uma mesinha redonda, de centro, que acho que você vai amar!  
Renata seguiu animada aquele senhor de andar vagaroso até atingir os fundos da loja onde lhe foi apresentado às mobílias antigas que haviam chegado, no entanto, foi algo diferente que chamou sua atenção. Uma casa de bonecas, ricamente detalhada, que estava sobre uma estante de carvalho.
– Que linda! – exclamou, encantada.  
– Concordo plenamente. Essa é uma mesa muito rara! – respondeu Gilberto acreditando que sua cliente falava da mesinha de centro que ele apresentava. – O que mais me impressiona é o excelente estado de conservação que essa peça do século XIX ainda ostenta e...
– Desculpe senhor Gilberto, mas eu me referia sobre aquela casa de bonecas! – interrompeu Renata, já sabendo que se não o fizesse, iria ouvir por um bom tempo a história sobre uma mesinha de centro.  
– Ah! Por que não disse logo?! – inquiriu, meio sem jeito, indo até a estante de carvalho. – Venha! É ainda mais bonita de perto.
Renata obedeceu.
– Nossa! – balbuciou ela olhando, através das janelinhas, o interior da casa repleto de bonecas.
– Parece até uma casa de verdade, não acha? Nunca vi algo do tipo. 
– Sim. Os detalhes são incríveis! – respondeu admirada. – Sempre quis ter uma dessas quando criança, mas meus pais nunca puderam comprar uma para mim... era muito caro para o curto orçamento de nossa família.
– Bom, nunca é tarde para realizar um sonho!
– Não senhor Gilberto... eu já estou muito velha para essas coisas, mas acho que talvez eu possa dar essa alegria a outra pessoa.
– À pequena Isabela, eu suponho! – arriscou Gilberto.
– Exatamente!
– Pois eu acho que ela vai adorar!  
– Espero que sim! – Quanto custa?
– Ainda não estipulei um valor! Eu a recebi ontem à noite de um antigo cliente, colecionador de antiguidades.
– Hum... entendi! – Que tal R$ 100,00?
– Não era bem o preço que eu tinha em mente, mas acho que posso fazer essa promoção para uma cliente como você! – disse Gilberto apanhando a casa de bonecas para colocá-la numa caixa.
Conversando trivialidades, os dois retornaram para o balcão da loja e ali fecharam negócio. Renata entregou o dinheiro e já se despedia quando foi tomada por uma súbita curiosidade:
– Diga-me senhor Gilberto! – Por que motivo esse seu antigo cliente colecionador se desfez de uma casa de bonecas tão linda como esta?
– Ele não tinha mais motivos para tê-la! – respondeu o velho meio pesaroso em dizer aquilo. – A filha dele desapareceu há pouco mais de três anos.  
– Nossa! Que trágico.
– Sim! O nome dele é André. Além de meu cliente é também um grande amigo e acompanhei de perto seu sofrimento. Desesperado com o sumiço da filha única, chegou a pensar em se suicidar, mas felizmente André aceitou meu convite e entrou para uma religião que esta fazendo muito bem a ele. Esta aprendendo a lidar com a dor e finalmente criou coragem para entrar no quarto que era da menina. Aos poucos esta se desfazendo dos objetos que podem ter serventia para outras crianças.
– Eu não o conheço, mas, por favor, dê meus sentimentos a ele. Não consigo nem imaginar qual seria a minha reação se algo parecido acontecesse com Isabela.  
O telefone da loja tocou e Gilberto, pedindo a Renata que aguardasse alguns instantes, interrompeu a conversa para atendê-lo. O telefonema parecia ser a respeito do rádio vitrola que estava sobre o balcão e que ainda não havia sido consertado. O diálogo ao telefone se estendeu e Renata, incomodada com a espera, olhou em seu relógio de pulso que já indicava 20:00h. Decidiu então que iria para casa e acenando para Gilberto, que explicava ao cliente os motivos pela demora no reparo do aparelho, prometeu que voltaria outro dia para que pudessem continuar a conversa.  
Levando numa das mãos uma bolsa de sapatos e noutra a caixa contendo seu sonho de infância, Renata deixou a lojinha de antiguidades. A casa de bonecas era pesada, mas como o antiquário era na esquina de sua rua, não foi preciso suportar o esforço por muito tempo. Chegou a casa, abriu a porta e viu sua empregada andando de um lado para o outro com o telefone sem fio nas mãos.
– Renata! – exclamou ao ver a patroa entrar. – Estava preocupada! Tentei te ligar, várias vezes, mas esta caindo na caixa postal! – Aconteceu alguma coisa?!   
– Não Gabi, está tudo bem! – Desculpe não ter avisado que iria chegar mais tarde, mas é que resolvi, de última hora, fazer umas comprinhas. – explicou Renata colocando a caixa e a bolsa sobre a mesa da cozinha. – Devo ter esquecido meu celular no trabalho... estava com tantas coisas na cabeça que nem me atentei para isso. – Cadê a minha filhota?
– No quarto, assistindo desenho animado.
Isabela gargalhava, assistindo Tom e Jerry, quando sua mãe adentrou no quarto trazendo a caixa que logo fez a menina esquecer a TV.
– O que é isso, mamãe? 
– Um presente para você! – respondeu Renata com um enorme sorriso de mãe coruja contido nos lábios.
A menina ficou encantada ao abrir a caixa e ver a linda casa de bonecas. Irradiando felicidade, pediu para que sua mãe a deixasse chamar a amiguinha Geovana para brincar. Renata olhou no relógio e considerou que ainda não estava tão tarde para sua pequena vizinha fazer uma breve visita. Após receber a autorização, Isabela disparou em direção ao primeiro andar e apanhou o telefone, discando rapidamente os números que sabia de cor.
– Alô!
– Olá senhora Bianca! Aqui é a Isabela.
– Oi Isabela! Tudo bem?
– Tudo! Estou ligando para perguntar se a Geovana pode vir até a minha casa para brincarmos com o presente novo que minha mãe me deu!   
– Você tem um presente novo?! – E qual é? – perguntou Bianca achando graça na maneira educada como a menininha se expressava.
– Uma casa de bonecas! E já vem com um monte de bonecas dentro!
– Nossa, que legal! – Vou levar a Geovanna até aí para vocês brincarem um pouquinho, mas é só um pouquinho mesmo, por que amanhã vocês duas tem que ir para escola, bem cedinho.
– Obrigado, senhora Bianca! – agradeceu, desligando o telefone, em seguida.
Ansiosa para brincar, Isabela correu de volta para o quarto e aguardou pela amiguinha. Não demorou muito e a campainha tocou. A empregada abriu a porta e pediu para que Bianca e sua filha entrassem. Renata desceu as escadas e disse a menininha, de cabelos cacheados que Isabela a aguardava em seu quarto. Imediatamente Geovana subiu desejando ver a casa de bonecas que sua amiga havia ganhado.
Bianca e Renata ficaram na sala a colocar o papo em dia, enquanto as meninas se divertiam no andar de cima.
– Olha a roupinha dessa aqui! – exclamou Geovanna, observando as vestes modernas da qual segurava.
– E essa aqui! – parece até as roupas que vovó costuma usar! – disse Isabela, mostrando uma das outras bonecas que usava vestidinho no modelo dos anos 60.
– Elas parecem ser de verdade, não acha?
– Parecem mesmo! – respondeu Isabela observando os traços perfeitos que as bonecas possuíam. – Eu quero ser essa! – disse ela, em seguida, escolhendo aquela que considerou ser a mais bonita.       
– E eu vou ser essa! – disse Geovana, por sua vez, apanhando outra.
As duas meninas ficaram a brincar por cerca de duas horas até que Bianca, lá de baixo, chamou sua filha para ir embora. Geovana pediu que ficassem um pouco mais, contudo, seu pedido foi negado, pois já estava muito tarde. Sem alternativa a garotinha então se despediu da amiga e prometendo voltar no dia seguinte, partiu ao lado da mãe. Renata então mandou que Isabela se preparasse para dormir. Em poucos minutos a menina já estava vestida com seu pijama listrado e deitada sobre a cama esperando o beijo de boa noite de sua mãe.
Renata entrou no quarto, sem bater, cobriu a filha com um lindo cobertor de estrelinhas e em seguida a beijou, carinhosamente, sobre a fronte.
– Boa noite, filhota!
– Boa noite, mamãe!
Deixando a porta entreaberta para que a luz do corredor confortasse a menina que ainda não estava acostumada a dormir no escuro, Renata saiu indo para seu quarto onde desabou, pesadamente, sobre a cama e dormiu como uma pedra. O mesmo não aconteceu com Isabela que custou a cair no sono. Envolvida pela penumbra de seu quarto ela admirava o novo brinquedo enquanto suas pálpebras iam ficando cada vez mais pesadas. Quando finalmente já estava quase adormecendo, levou um susto ao ver uma das luzes da casa de boneca se acender e, imediatamente, a menina se sentou sobre a cama esfregando os olhos. “Como isso é possível?!” pensou ela desacreditada do que via.
Saiu da cama e, pé ante pé, foi se aproximando da pequena casa que tinha uma pálida luz saindo da janela da sala. Assim que chegou perto o suficiente, suas pernas estremeceram, pois todas as bonecas que, cuidadosamente, tinha colocado nos quartos agora se encontravam na sala, reunidas ao redor de uma mesinha. No exato instante em que viu essa cena, Isabela foi bombardeada com o som de inúmeras vozes de meninas pedindo por socorro e, apavorada, protegeu os ouvidos com as mãos. Dominada pelo medo, correu em direção a porta entreaberta para chamar por sua mãe, no entanto, a porta se fechou bruscamente antes que ela pudesse sair. Gritando Isabela pediu por socorro, mas misteriosamente sua voz parecia não sair daquele cômodo. Em meio ao desespero ela teve a viva impressão de que a luz da casa de bonecas ficava cada vez mais forte. Uma claridade intensa ofuscou seus olhos e após isso os gritos cessaram.
No dia seguinte, ao som de seu fiel despertador, Renata acordou e como fazia todos os dias, foi até o quarto de sua filha chamá-la para se preparar para a escola. Como não a encontrou, percorreu todos os demais cômodos da casa. No primeiro andar – já notadamente abalada – acordou a empregada perguntando pela filha, mas a pobre mulher, assim como ela, não sabia de nada.
 Completamente nervosa, a mãe da menina apanhou o telefone e ligou para a Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente. Como eu havia dito anteriormente, Renata cumpriu todos os procedimentos necessários para tentar encontrar a filha que havia desaparecido sem deixar rastros, mas até hoje Isabela continua fazendo parte do percentual de jovens desaparecidos do Brasil. Ninguém jamais atentou para a nova bonequinha, de pijama listrado, no interior da casa de bonecas.  

Por Thiago Tavares.
CONTOS DE TERROR  

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